quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Mais uma resenha de "Cinematographo em Nictheroy"

A revista argentina "Imagofagia" publicou em sua edição de n. 10, uma resenha sobre o livro "Cinematographo em Nictheroy: história das salas de cinema de Niterói", assinada pela pesquisadora carioca Talitha Ferraz. Somando-se a outras resenhas já publicadas, é mais uma análise do livro.
A resenha está transcrita abaixo, podendo também ser acessada no site da revista neste link.


Cinematographo em Nichteroy: história das salas de cinema de Niterói
Sobre Freire, Rafael de Luna.Cinematographo em Nichteroy:história das salas de cinema de Niterói. Niterói: Niterói Livros/Rio de Janeiro: INEPAC, 2012, 263 pp., ISBN: 978-85-85896-47-8
por Talitha Ferraz*


Uma evidência, já há muito reiterada, é a de que a sala de cinema organiza-se na história das mídias como um elemento intrinsecamente arraigado às próprias formações e engrenagens do espaço urbano. Mais do que isso, ela se tornou ao longo do tempo um espaço dedicado à tessitura dos sonhos de crianças, mulheres e homens que, de transeuntes, rapidamente se transmutam em espectadores e vice-versa. É justamente apegado a este horizonte onírico que o pesquisador Rafael de Luna Freire, professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFF (Universidade Federal Fluminense), arremata a última frase do livro Cinematographo em Nictheroy: história das salas de cinema de Niterói, fazendo remissão ao título do clássico estudo “Espaços do sonho”, que o também pesquisador da UFF João Luiz Vieira desenvolveu, ao lado de Margareth Pereira, em 1983, no âmbito da extinta Embrafilme. A obra de Rafael de Luna, por sua vez lançada em 2012, evidencia a profícua conexão entre cidade e equipamentos coletivos de lazer cinematográfico. Em 35 breves capítulos, o autor constrói uma aguçada percepção sobre a trajetória das salas de cinema niteroienses, ao mesmo tempo em que oferece aos leitores uma primorosa recuperação das curiosidades e histórias ligadas ao desenvolvimento urbano da antiga capital fluminense.
Por meio de uma pesquisa de fôlego –que indica um forte empenho investigativo do autor e um proveitoso acesso a arquivos e interlocutores–, a obra começa remontando ao longínquo surgimento de Niterói, que passou à condição de cidade e capital da província do Rio de Janeiro em 1835. Nas primeiras 40 páginas do livro, imediatamente após tratar das origens e dos primeiros adensamentos das “Bandas d’Além”, conforme a região chegou a ser conhecida, Rafael de Luna passa ao tema do cinema. Nesta parte, não despreza a importante fase de implantação da imagem em movimento nos cotidianos citadinos, numa época quando experimentos e maquinarias visuais, de cunhos científico e artístico, já estavam presentes nos lazeres dos sujeitos modernos, atuando no cerne das transformações dos seus modos de percepção. No entanto, Niterói precisaria esperar por mais 62 anos até viver a definitiva introdução do cinematógrafo na realidade urbana que lá chegava a tímidos passos. 
Rafael de Luna relata que, apesar da primeira experiência de exibição de imagens em movimento ter ocorrido na região em 1897 –cerca de um ano após o advento do omniógrapho da Ouvidor, no Rio de Janeiro, capital federal da então recente República–, a fixação do espetáculo cinematográfico em salas permanentes só se deu em 1907. Até lá, o cinema se comportaria em Niterói como uma atividade itinerante e rara, sujeita às intempéries de um dispendioso mercado de aquisição de fitas americanas e europeias.
Na primeira idade do cinema na “invicta cidade”, mudanças administrativas e de ordem urbana atingiram em cheio as construções de sociabilidade e a formação da identidade niteroiense, o que, segundo indicam os dados levantados pelo autor, determinaram o tipo de ocupação e de ampliação do espaço público lá efetivado. Tal como sustenta Rafael de Luna, no instante em que o clima civilizatório e o apreço pelo moderno irrompem na “cidade que cresceu sempre a partir do litoral” (28), os encontros traçados durante o hábito de “avenidar” a seminal Avenida do Rio Branco igualmente contaram com outro cadinho para sua consolidação. “As salas de cinema também se constituíram em irrecusáveis convites para se ir às ruas” (27). 
É muito interessante notar o trabalho do autor em sua percepção acerca de alguns laços que o cinema, desde muito cedo e em diversas cidades mundiais, atou com elementos de outras naturezas. Nesse caminho, a pesquisa destaca a relação do cinema em Niterói com o transporte urbano (ao abordar a migração de salas exibidoras para um pedaço da cidade mais próximo à nova estação de barcas em 1908), os demais comércios tradicionais (os quais também se transformariam em marcos referenciais para os moradores) e o consumo de cerveja, revistas teatrais e parques (o que mostra o comportamento da exibição cinematográfica em face de demais atividades recreativas). 
Perante excertos extraídos de jornais de época, Rafael de Luna verifica que Niterói não escapou da febre dos cinematógrafos ocorrida entre as décadas de 1910 e 1920, quando pulularam, aqui e ali, cine-teatros e, logo em seguida, cinemas mais estruturados, cujas marcas costumavam ser o maior conforto oferecido ao público, a divisão da plateia em primeira e segunda categorias (incluindo aí a diferenciação nos preços dos bilhetes) ou a dotação de perfis voltados ora para a classe operária, ora para a elite.
Aliás, o pesquisador localiza dentro deste recorte temporal alguns tópicos relevantes: o surgimento dos quatro principais cinemas niteroienses da década de 1910 (Polyterpsia, Rio, Royal e Éden), todos ainda sujeitos a uma programação que continha esquetes teatrais e musicais; a crise que atingiu o mercado cinematográfico brasileiro na primeira década do século XX, dificultando a longevidade de salas menos promissoras; a transformação do cinema em hábito corriqueiro; o avanço do star system europeu e hollywoodiano no Brasil; a inauguração dos cinemas de arrabalde, mais distantes do centro urbano, e do primeiro palácio cinematográfico da região, o Cine-teatro Imperial (1928); e, finalmente, os graves indícios de que através do cinema eram operados determinados projetos de segregação social, quando os jornais e a elites acusavam as casas exibidoras mais populares de abrigar espectadores mal formados ou de funcionarem como antros propícios a atentados contra a moral das “senhoras” e atos infames atribuídos a personagens “sem-vergonha”, geralmente caracterizados como homens do povo (84-91).
Na perspicaz investigação de Rafael de Luna, destaca-se o fato de que a cidade do Rio de Janeiro sempre esteve no horizonte das práticas de lazer e sociabilidade niteroienses. O autor salienta que o Rio fora, em muitos momentos, uma influência a ser renegada em prol da valorização dos costumes e da esfera de lazer próprios a Niterói. De fato, havia um ávido desejo pelo progresso fluminense, defendido por camadas das classes mais abastadas e políticos locais. A cidade crescia, mas o ranço rural e a ideia de “cidade dormitório” ainda permaneceriam assombrando os sonhos fundamentalmente bairristas de alguns moradores, críticos e comerciantes.
Com a entrada do cinema sonoro na realidade da exibição cinematográfica brasileira a partir de 1929, tópico abordado pelo pesquisador já na metade do livro, a necessidade de profundas alterações nas salas de cinema soprou novos ventos sobre todo o setor e atingiu, logicamente, Niterói. A corrida por melhores condições para a incorporação adequada do filme sonorizado mudou o cenário do circuito exibidor niteroiense, trazendo novidades arquitetônicas e técnicas.
O livro de Rafael de Luna avança articulando os fatos da urbanidade de Niterói e o papel da sala de cinema como marco citadino e elemento em intensa conexão com as práticas de lazer e a vida em comum tecida pelos moradores da região. Ao mesmo tempo, não deixa de se ater a temáticas capitais relacionadas ao mercado cinematográfico da década de 1940 e 1950. Nesta perspectiva, a obra sutilmente indica que a programação das casas exibidoras e a experiência do público em Niterói não seguiram impassíveis aos efeitos da industrialização do braço produtor e seu correlato abatimento, marcadamente expresso pela derrocada de estúdios como Atlântida e Vera Cruz. É válido salientar que este trabalho de Rafael de Luna se coloca de forma crítica frente à questão da consolidação de um viés nitidamente empresarial da distribuição e exibição, cujas majorsinternacionais e grupos nacionais –a exemplo do Grupo Severiano Ribeiro– abocanhavam para si naquele momento as rédeas do mercado.
Niterói chega à década de 1960 com um estruturado circuito exibidor, conforme indica Rafael de Luna. Os desejos dos espectadores pela novidade mesclam-se com novas possibilidades de vidência dos filmes. Tecnologias chegam, ampliando as possibilidades de contato do público com o filme e também, em algum grau, encarecem a atividade de espectação. Cinemascope, cinerama, super cinerama 70 mm, tudo isso passa a compor o cenário da oferta de imagem em movimento em Niterói. O autor conduz os leitores de forma com que começamos a visualizar os novos rumos que o cinema tomaria em meio à entrada de outros vetores na formação das plateias da região. Este foi o caso do Cine-arte UFF que, inaugurado em 1968, dedicava-se a “filmes de arte”. Aliás, a obra de Rafael de Luna, que só segue a trajetória dos cines niteroienses até 2012, não teve condições de contemplar a oportuna reabertura do Cine-arte UFF, programada para ocorrer ainda em 2014.
Nos últimos sete capítulos, o convite é para que nos aproximemos da contemporaneidade: as páginas se concentrarão a partir daí no amplo recorte que vai dos anos 1960 aos dias atuais. O autor começa descrevendo as fortes alterações no espaço urbano de Niterói, proporcionadas por uma extensiva motorização da cidade, o surgimento de viadutos, os estilos modernistas para a arquitetura dos prédios recém-construídos, o acirramento da pobreza e a precariedade do acesso à moradia. O cinema, já no meio de todos esses aspectos, também responderia pelas consequências de um grande desastre ocorrido no mundo circense em 1961. Diante de um grave incêndio em um circo fluminense, que vitimou centenas de pessoas, o controle da segurança em salas de exibição enrijeceu e algumas casas precisaram se adequar, perdendo, por determinação municipal, parte de suas capacidades de lotação, diminuindo, com isso, de tamanho. Rafael de Luna também chama atenção para outros fatores que estiveram presentes na crise que o mercado enfrentou à época: inflação, altos gastos com o transporte de fitas e aumento do preço do aluguel dos filmes, avanço dos impostos, escalada da TV etc. Foi nesse bojo, ressalta o autor, que alguns cinemas de segunda linha, considerados poeiras na época, fecharam as portas.
Mas nem tudo estava perdido, a despeito das ameaças que as casas de cinema sofreram entre os anos 1960 e 1970.  A chegada das salas de galeria parece ter dado fôlego ao circuito exibidor local. Com o aparecimento do Cinema I e do Cine Center, em 1975, e do Itaipu Drive-in um ano antes, um novo vigor atingiu o público, que agora já se inseria em outra etapa do consumo audiovisual e numa configuração urbana que elegeu novas centralidades na cidade. Não tardaram a surgir o videocassete e a expansão da prática domiciliar de assistir a filmes. Ao mesmo tempo, a semente do shopping center –o novo espaço para o cinema, os encontros e as efetivações de laços de sociabilidade– fez crescer as suas raízes em Niterói.
Acompanhando tais mudanças, a degradação de áreas no entorno do Centro, conforme coloca Rafael de Luna, e a sistemática reconfiguração citadina contribuíram para o fechamento dos antigos prédios dos cinemas que outrora marcavam as ruas de Niterói. Mesmo assim, no final do século XX, a cidade ainda contava com 11 salas de exibição, das quais, pouco a pouco, as de rua encerraram de vez as suas atividades, ganhando outras destinações em nada cinematográficas. No final da obra, há a indicação de que, em 2012, a faixa de 11 cinemas em atividade em Niterói se mantinha. No entanto, esse número não expressa uma multiplicidade de opções à escolha do espectador. Todas as poltronas de Niterói circunscrevem-se, pelo menos até agora, a dois cinemas de shopping, longe do improviso e da força das calçadas.
Ao finalizar o livro com um epílogo pessoal, Rafael de Luna não traça somente a sua historiografia no acompanhamento do cenário exibidor niteroiense a partir da década de 1990 (quando começou, aos 10 anos, a frequentar as grandes telas, conforme comenta). O autor relata experiências e sensações em fragmentos mnemônicos que se unem a outros vivos discursos acerca da relação entre cinema e espaço urbano. Coloca-se em associação profícua com uma rede de narrativas que hoje podemos (felizmente) localizar em recentes pesquisas acadêmicas, cuja fecunda contribuição, tal como a de Rafael de Luna, é escavar e cartografar tudo aquilo que os cinemas de rua deixaram de legado em nossas cidades, memórias e afetos, em benefício do futuro que sempre vem.         

* Talitha Ferraz é doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. É professora na Universidade Estácio de Sá e na ESPM-Rio. Faz parte do grupo de pesquisa Estudos da Cidade e da Comunicação, vinculado à Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC-ECO-UFRJ/CNPq). É autora do livro A segunda Cinelândia carioca (Ed. Mórula, 2012). E-mail:talitha.ferraz@gmail.com