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Cinematographo em Nichteroy: história das salas de cinema de
Niterói
Sobre Freire, Rafael de Luna.Cinematographo em
Nichteroy:história das salas de cinema de Niterói. Niterói: Niterói Livros/Rio
de Janeiro: INEPAC, 2012, 263 pp., ISBN: 978-85-85896-47-8
por Talitha Ferraz*
Uma evidência, já há muito reiterada, é a de que a sala de
cinema organiza-se na história das mídias como um elemento intrinsecamente
arraigado às próprias formações e engrenagens do espaço urbano. Mais do que
isso, ela se tornou ao longo do tempo um espaço dedicado à tessitura dos
sonhos de crianças, mulheres e homens que, de transeuntes, rapidamente se
transmutam em espectadores e vice-versa. É justamente apegado a este
horizonte onírico que o pesquisador Rafael de Luna Freire, professor do curso
de Cinema e Audiovisual da UFF (Universidade Federal Fluminense), arremata a
última frase do livro Cinematographo em Nictheroy: história das salas de
cinema de Niterói, fazendo remissão ao título do clássico estudo “Espaços do
sonho”, que o também pesquisador da UFF João Luiz Vieira desenvolveu, ao lado
de Margareth Pereira, em 1983, no âmbito da extinta Embrafilme. A obra de
Rafael de Luna, por sua vez lançada em 2012, evidencia a profícua conexão
entre cidade e equipamentos coletivos de lazer cinematográfico. Em 35 breves
capítulos, o autor constrói uma aguçada percepção sobre a trajetória das
salas de cinema niteroienses, ao mesmo tempo em que oferece aos leitores uma
primorosa recuperação das curiosidades e histórias ligadas ao desenvolvimento
urbano da antiga capital fluminense.
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Por meio de uma pesquisa de fôlego –que indica um forte
empenho investigativo do autor e um proveitoso acesso a arquivos e
interlocutores–, a obra começa remontando ao longínquo surgimento de Niterói,
que passou à condição de cidade e capital da província do Rio de Janeiro em
1835. Nas primeiras 40 páginas do livro, imediatamente após tratar das origens
e dos primeiros adensamentos das “Bandas d’Além”, conforme a região chegou a
ser conhecida, Rafael de Luna passa ao tema do cinema. Nesta parte, não
despreza a importante fase de implantação da imagem em movimento nos cotidianos
citadinos, numa época quando experimentos e maquinarias visuais, de cunhos
científico e artístico, já estavam presentes nos lazeres dos sujeitos modernos,
atuando no cerne das transformações dos seus modos de percepção. No entanto, Niterói
precisaria esperar por mais 62 anos até viver a definitiva introdução do
cinematógrafo na realidade urbana que lá chegava a tímidos passos.
Rafael de Luna relata que, apesar da primeira experiência de
exibição de imagens em movimento ter ocorrido na região em 1897 –cerca de um
ano após o advento do omniógrapho da Ouvidor, no Rio de Janeiro, capital
federal da então recente República–, a fixação do espetáculo cinematográfico em
salas permanentes só se deu em 1907. Até lá, o cinema se comportaria em Niterói
como uma atividade itinerante e rara, sujeita às intempéries de um dispendioso
mercado de aquisição de fitas americanas e europeias.
Na primeira idade do cinema na “invicta cidade”, mudanças
administrativas e de ordem urbana atingiram em cheio as construções de
sociabilidade e a formação da identidade niteroiense, o que, segundo indicam os
dados levantados pelo autor, determinaram o tipo de ocupação e de ampliação do
espaço público lá efetivado. Tal como sustenta Rafael de Luna, no instante em
que o clima civilizatório e o apreço pelo moderno irrompem na “cidade que
cresceu sempre a partir do litoral” (28), os encontros traçados durante o
hábito de “avenidar” a seminal Avenida do Rio Branco igualmente contaram com
outro cadinho para sua consolidação. “As salas de cinema também se constituíram
em irrecusáveis convites para se ir às ruas” (27).
É muito interessante notar o trabalho do autor em sua
percepção acerca de alguns laços que o cinema, desde muito cedo e em diversas
cidades mundiais, atou com elementos de outras naturezas. Nesse caminho, a
pesquisa destaca a relação do cinema em Niterói com o transporte urbano (ao
abordar a migração de salas exibidoras para um pedaço da cidade mais próximo à
nova estação de barcas em 1908), os demais comércios tradicionais (os quais
também se transformariam em marcos referenciais para os moradores) e o consumo
de cerveja, revistas teatrais e parques (o que mostra o comportamento da
exibição cinematográfica em face de demais atividades recreativas).
Perante excertos extraídos de jornais de época, Rafael de
Luna verifica que Niterói não escapou da febre dos cinematógrafos ocorrida
entre as décadas de 1910 e 1920, quando pulularam, aqui e ali, cine-teatros e,
logo em seguida, cinemas mais estruturados, cujas marcas costumavam ser o maior
conforto oferecido ao público, a divisão da plateia em primeira e segunda
categorias (incluindo aí a diferenciação nos preços dos bilhetes) ou a dotação
de perfis voltados ora para a classe operária, ora para a elite.
Aliás, o pesquisador localiza dentro deste recorte temporal
alguns tópicos relevantes: o surgimento dos quatro principais cinemas
niteroienses da década de 1910 (Polyterpsia, Rio, Royal e Éden), todos ainda
sujeitos a uma programação que continha esquetes teatrais e musicais; a crise
que atingiu o mercado cinematográfico brasileiro na primeira década do século
XX, dificultando a longevidade de salas menos promissoras; a transformação do
cinema em hábito corriqueiro; o avanço do star system europeu e
hollywoodiano no Brasil; a inauguração dos cinemas de arrabalde, mais distantes
do centro urbano, e do primeiro palácio cinematográfico da região, o
Cine-teatro Imperial (1928); e, finalmente, os graves indícios de que através
do cinema eram operados determinados projetos de segregação social, quando os
jornais e a elites acusavam as casas exibidoras mais populares de abrigar
espectadores mal formados ou de funcionarem como antros propícios a atentados
contra a moral das “senhoras” e atos infames atribuídos a personagens
“sem-vergonha”, geralmente caracterizados como homens do povo (84-91).
Na perspicaz investigação de Rafael de Luna, destaca-se o
fato de que a cidade do Rio de Janeiro sempre esteve no horizonte das práticas
de lazer e sociabilidade niteroienses. O autor salienta que o Rio fora, em
muitos momentos, uma influência a ser renegada em prol da valorização dos costumes
e da esfera de lazer próprios a Niterói. De fato, havia um ávido desejo pelo
progresso fluminense, defendido por camadas das classes mais abastadas e
políticos locais. A cidade crescia, mas o ranço rural e a ideia de “cidade
dormitório” ainda permaneceriam assombrando os sonhos fundamentalmente
bairristas de alguns moradores, críticos e comerciantes.
Com a entrada do cinema sonoro na realidade da exibição
cinematográfica brasileira a partir de 1929, tópico abordado pelo pesquisador
já na metade do livro, a necessidade de profundas alterações nas salas de
cinema soprou novos ventos sobre todo o setor e atingiu, logicamente, Niterói.
A corrida por melhores condições para a incorporação adequada do filme
sonorizado mudou o cenário do circuito exibidor niteroiense, trazendo novidades
arquitetônicas e técnicas.
O livro de Rafael de Luna avança articulando os fatos da
urbanidade de Niterói e o papel da sala de cinema como marco citadino e
elemento em intensa conexão com as práticas de lazer e a vida em comum tecida
pelos moradores da região. Ao mesmo tempo, não deixa de se ater a temáticas
capitais relacionadas ao mercado cinematográfico da década de 1940 e 1950.
Nesta perspectiva, a obra sutilmente indica que a programação das casas
exibidoras e a experiência do público em Niterói não seguiram impassíveis aos
efeitos da industrialização do braço produtor e seu correlato abatimento,
marcadamente expresso pela derrocada de estúdios como Atlântida e Vera Cruz. É
válido salientar que este trabalho de Rafael de Luna se coloca de forma crítica
frente à questão da consolidação de um viés nitidamente empresarial da
distribuição e exibição, cujas majorsinternacionais e grupos nacionais –a
exemplo do Grupo Severiano Ribeiro– abocanhavam para si naquele momento as
rédeas do mercado.
Niterói chega à década de 1960 com um estruturado circuito
exibidor, conforme indica Rafael de Luna. Os desejos dos espectadores pela
novidade mesclam-se com novas possibilidades de vidência dos filmes.
Tecnologias chegam, ampliando as possibilidades de contato do público com o
filme e também, em algum grau, encarecem a atividade de espectação.
Cinemascope, cinerama, super cinerama 70 mm, tudo isso passa a compor o cenário
da oferta de imagem em movimento em Niterói. O autor conduz os leitores de
forma com que começamos a visualizar os novos rumos que o cinema tomaria em
meio à entrada de outros vetores na formação das plateias da região. Este foi o
caso do Cine-arte UFF que, inaugurado em 1968, dedicava-se a “filmes de arte”.
Aliás, a obra de Rafael de Luna, que só segue a trajetória dos cines
niteroienses até 2012, não teve condições de contemplar a oportuna reabertura
do Cine-arte UFF, programada para ocorrer ainda em 2014.
Nos últimos sete capítulos, o convite é para que nos
aproximemos da contemporaneidade: as páginas se concentrarão a partir daí no
amplo recorte que vai dos anos 1960 aos dias atuais. O autor começa descrevendo
as fortes alterações no espaço urbano de Niterói, proporcionadas por uma
extensiva motorização da cidade, o surgimento de viadutos, os estilos
modernistas para a arquitetura dos prédios recém-construídos, o acirramento da
pobreza e a precariedade do acesso à moradia. O cinema, já no meio de todos
esses aspectos, também responderia pelas consequências de um grande desastre
ocorrido no mundo circense em 1961. Diante de um grave incêndio em um circo
fluminense, que vitimou centenas de pessoas, o controle da segurança em salas
de exibição enrijeceu e algumas casas precisaram se adequar, perdendo, por
determinação municipal, parte de suas capacidades de lotação, diminuindo, com
isso, de tamanho. Rafael de Luna também chama atenção para outros fatores que
estiveram presentes na crise que o mercado enfrentou à época: inflação, altos
gastos com o transporte de fitas e aumento do preço do aluguel dos filmes,
avanço dos impostos, escalada da TV etc. Foi nesse bojo, ressalta o autor, que
alguns cinemas de segunda linha, considerados poeiras na época, fecharam as
portas.
Mas nem tudo estava perdido, a despeito das ameaças que as
casas de cinema sofreram entre os anos 1960 e 1970. A chegada das salas
de galeria parece ter dado fôlego ao circuito exibidor local. Com o
aparecimento do Cinema I e do Cine Center, em 1975, e do Itaipu Drive-in um ano
antes, um novo vigor atingiu o público, que agora já se inseria em outra etapa
do consumo audiovisual e numa configuração urbana que elegeu novas
centralidades na cidade. Não tardaram a surgir o videocassete e a expansão da
prática domiciliar de assistir a filmes. Ao mesmo tempo, a semente do shopping
center –o novo espaço para o cinema, os encontros e as efetivações de
laços de sociabilidade– fez crescer as suas raízes em Niterói.
Acompanhando tais mudanças, a degradação de áreas no entorno
do Centro, conforme coloca Rafael de Luna, e a sistemática reconfiguração
citadina contribuíram para o fechamento dos antigos prédios dos cinemas que
outrora marcavam as ruas de Niterói. Mesmo assim, no final do século XX, a
cidade ainda contava com 11 salas de exibição, das quais, pouco a pouco, as de
rua encerraram de vez as suas atividades, ganhando outras destinações em nada
cinematográficas. No final da obra, há a indicação de que, em 2012, a faixa de
11 cinemas em atividade em Niterói se mantinha. No entanto, esse número não
expressa uma multiplicidade de opções à escolha do espectador. Todas as
poltronas de Niterói circunscrevem-se, pelo menos até agora, a dois cinemas de shopping,
longe do improviso e da força das calçadas.
Ao finalizar o livro com um epílogo pessoal, Rafael de Luna
não traça somente a sua historiografia no acompanhamento do cenário exibidor
niteroiense a partir da década de 1990 (quando começou, aos 10 anos, a
frequentar as grandes telas, conforme comenta). O autor relata experiências e
sensações em fragmentos mnemônicos que se unem a outros vivos discursos acerca
da relação entre cinema e espaço urbano. Coloca-se em associação profícua com
uma rede de narrativas que hoje podemos (felizmente) localizar em recentes
pesquisas acadêmicas, cuja fecunda contribuição, tal como a de Rafael de Luna,
é escavar e cartografar tudo aquilo que os cinemas de rua deixaram de legado em
nossas cidades, memórias e afetos, em benefício do futuro que sempre vem.
* Talitha Ferraz é doutora em Comunicação e Cultura
pela ECO-UFRJ. É professora na Universidade Estácio de Sá e na ESPM-Rio. Faz
parte do grupo de pesquisa Estudos da Cidade e da Comunicação, vinculado à
Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC-ECO-UFRJ/CNPq). É
autora do livro A segunda Cinelândia carioca (Ed. Mórula, 2012).
E-mail:talitha.ferraz@gmail.com